Governador do Pará, Helder Barbalho publica artigo sobre a PL 1904

Empunhar a bandeira do aborto, que mobiliza amplos segmentos da sociedade por genuinamente defenderem a vida desde a concepção, é muito diferente de criar uma dosimetria da pena mais favorável a estupradores do que a estupradas. Isso é barbárie.

Nem entro aqui na manobra política de colocar essa discussão complexa e de enormes efeitos sociais e humanos com o carimbo reducionista de “pauta de costumes”.

No caso concreto, a pena para o crime de homicídio simples – definido pelo Código Penal como quando se mata alguém – varia de seis a 20 anos de prisão.

Já a pena para estupro vai de seis a dez anos, podendo chegar a 12 anos se a vítima for menor de 18 anos e maior de 14! Pune-se mais a vítima do que o criminoso.

É mais grave ainda quando sabemos que em muitas situações ocorrem abusos, e as vítimas, muitas vezes jovens ou menores, ultrapassam esse prazo de 22 semanas até descobrirem sua verdadeira condição de gestantes. Puni-las depois de terem sido brutalizadas? Essa é a melhor resposta que, como sociedade, podemos oferecer?

Ou seja, daqui a pouco por essa lógica (ou falta de), o terraplanismo demagogo poderá propor (por que mobiliza) que os vendedores de armas devem ser punidos com mais rigor do que os assassinos. Ou que os donos de bares sejam mais culpados do que os motoristas que dirigem embriagados e tiram vidas. Qual é a lógica? A lógica é a falta de lógica, que é a lógica da barbárie.

A questão do aborto já está hoje pacificada em nosso sistema legal. O aborto é proibido, salvo em caso de risco de vida da gestante ou estupro. Não há, como se vê, prazo de semanas para aplicação de penas. E já existe pena! De três a seis anos!

O problema de legislar para galvanizar bases e mobilizar setores é que isso é tudo, menos uma contribuição para a solução dos grandes problemas do país.

Uma das funções mais nobres e difíceis do Congresso Nacional não é competir pela quantidade de likes. Reformas estruturais, como a tributária e as da Previdência que de tempos e tempos o país precisará fazer para o bem das futuras gerações, não são temas que mobilizam nem geram likes.

Mas são imprescindíveis para fazer um país melhor. Acabar com a inflação, como já fizemos, idem. Criar programas assistências, também.

Usar as sagradas tribunas do Congresso Nacional para conspurcar e instigar os instintos mais primitivos de um povo que desesperadamente anseia por soluções é manipular as massas e institucionalizar a barbárie como forma de governança.

A democracia é muito mais do que isso. A democracia é um esforço coletivo de compreender as pulsões e os impulsos que clamam por repostas muitas vezes punitivistas e proteger o povo do próprio senso de desespero.

É para isso que servem os líderes: para conduzir e apontarem caminhos melhores do que a falta de caminho, a quebradeira, o caos e a baderna institucional.

O PL do aborto é um péssimo exemplo do que não podemos permitir. Apequenar nossas instituições e transformá-las em puxadinhos das redes sociais, sobretudo daquelas que possuem o que de mais tóxico pode existir: desinformação, ódio e soluções simplistas para problemas complexos.

Parafraseando Diderot, se o fanatismo está a um passo da barbárie, o extremismo está no meio do caminho.

  • Helder Barbalho, Governador do Pará para o portal O Globo.

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